Hipermodernidades 7 - O projecto de abater gente ao efectivo

O futuro tornou-se curto, a esperança precária, a ilusão efémera. Das autoestradas da informação ao individualismo hedonista, do aparente mundo do bem-estar ao fim do combate ideológico e revolucionário, a crença pacífica no ocidente moderno e opulento deu lugar ao fim de todas as utopias. Das transformações radicais nas sociedades avançadas à tomada do poder pelos netos dos perdedores como sinal de vingança contra os povos que ambicionavam a uma vida económica, social, política e cultural que conduzisse a humanidade a uma sociedade do conhecimento e contra o sofrimento e angústia de uma perda constante. Comercializou-se a esperança, mercantilizou-se a falsa solidariedade das nações e instalou-se a desregulamentação económica como arma de arremesso contra a ilusão e o desejo legítimo de quem quer viver sem sobressaltos e em busca de um melhoramento de si.

Os povos ao perderem o seu Estado perdem o futuro. Quanto menos Estado, mais campo aberto se expõe ao crime de Estado. Ora a privatização dos bens essenciais de consumo é o resultado dessa estrutura criminosa que se esconde atrás da fachada de um Estado como nação.

A concorrência desenfreada estimula a traição e com ela a desagregação do corpo social. Deixa-se de confiar no irmão, no vizinho, no amigo para se viver no diminuto espaço do «aqui e agora» onde o desejo dá lugar à vontade imposta do «já», custe o que custar sem pejo nem vergonha, sem honra nem piedade. A «dessolidariedade» entre próximos vai desfazendo a rede estrutural dos afectos. Deixa de haver o colectivo para se dar lugar ao egoísmo individual sustentado nas forças ocultas dos mercados tecnológicos. Deixámos de viver em comunidade para nos movermos em não-lugares que se transmutam em cada segundo. É a precaridade a uma velocidade estonteante como se quiséssemos o futuro arrumado no passado.

Não há espaço para a contemplação, somos sugados pela vertigem dos imediatismos de sucessivas modas que nos leva a um híper descontrolo da vida, ao próprio desconhecimento de si na relação precária com os outros.

Na aparente transparência do acesso ao consumo onde tudo está disponível sem filtros oculta-se a mais sinistra das ditaduras que desta vez não quer apenas privar os povos das suas liberdades fundamentais mas destruí-los a uma escala tal que abra espaço ao acesso a recursos só para alguns: as elites dos traidores do bairro.

A desregulação dos comportamentos, os excessos que advêm das vertigens quotidianas, a ilusão de poder, está a deixar a população doente, escrava de medicamentos, sofrendo as mais diversas patologias psicológicas, levando ao descontrolo da sua existência e à perda irreversível de si. É deste modo que se vão abatendo indivíduos ao efectivo para que se abra um novo espaço de deleite dos colaboracionistas desta ditadura cujo paradigma é esta Europa de não-eleitos que promove o abate indiscriminado do seu povo.

Sonhámos com uma sociedade de bem-estar e fomos conduzidos a uma sociedade do risco permanente, do medo, do obstáculo, do sobressalto, da angústia, do inimigo interior.

A necessidade de adaptação a todo este processo histórico está a levar-nos ao olvido dos fundamentos da sociedade humanista e solidária. Tudo em nome dos mercados onde indivíduos sem sangue nem alma, sem escrúpulos nem valores, brincam com seres humanos como quem joga «playstation». Nesta sociedade do hiperconsumo desenfreado de supérfluos e da corrida ao lucro, transformaram-nos em bonecos animados que se abatem para que se atinjam os objetivos do jogo. Deixámos de ser gente para passarmos a ser modelos de fantasmas.

Somos protagonistas de um mundo perturbado, mas devemos ser lucidamente protagonistas da reconquista do tempo social e solidário que só uma sociedade do conhecimento e do saber pode proporcionar em nome de um futuro em paz.

Luís Filipe Sarmento, Gabinete de Curiosidades, 2017

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Foto: José Lorvão

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