Hipermodernidades 12 - Tudo é urgente quando se esquece o que é importante.

Há ao mesmo tempo cada vez mais consciência de si ao prazer primário e, paradoxalmente, um abandono de si ao prazer do conhecimento.

Tudo é efémero: o que se consome numa eterna infantilização do desperdício; o produto de lazer como moda ou, pior, como mimese; as férias como veículo que autentifica poder em relação ao outro que, por sua vez, se endivida para não ficar atrás nessa terrível disputa de aparências.

Na saúde, as coisas agravam-se pelo desejo de uma crença patética na eternidade que leva o indivíduo ao consumo de produtos falsos das farmacêuticas que prometem milagres de rejuvenescimento que nem o alquímico elixir da juventude poderia assegurar. Recauchuta-se o aspecto da pele e deixa-se envelhecer o espírito da curiosidade e do saber. Vive-se mais sem se saber o que se pode viver saudavelmente na paleta global.

A educação é abandonada a favor da informação excessiva sobre o objecto efémero. A leitura dos clássicos foi desprezada, abstraindo de si o conhecimento da história, o desconhecimento dos modernistas é uma realidade que deixa de o ser no espírito de um tempo em aceleração suicida. A história só é exaltada através de detalhes descontextualizados, dando lugar a ideias de factos inexistentes. A escola não tem poder de sedução nem de captação.
Os seus métodos com mais ou menos computadores e técnicas digitais estão obsoletos. Impõe-se o discurso formatado, rígido e agressivo e esquece-se a conversa, o diálogo, o lugar à questão, à dúvida, ao porquê. Os programas já não são atraentes porque não pertencem a este tempo nem respondem às suas exigências. Quanto mais insucesso mais ignorância, mais dificuldade da aplicação de si no exercício social, mais exposto ao perigo da violência do poder dos ignorantes cujas elites estimulam a arte do engano.

Pedem-se mais horas de trabalho com remunerações mais baixas, alterando negativamente a qualidade da produção, mas levando ao lucro pornográfico daqueles que procuram desmesuradamente o consumo inconsequente do luxo. Os empresários sustentam-se dos bancos para sustentarem banqueiros que, por sua vez, roubam indiscriminadamente os cidadãos. Quem viveu acima das suas possibilidades? O cidadão comum? Não. A sociedade criminosa de políticos corruptos, incompetentes e ignorantes em associação clandestina com traficantes de dinheiro e influências, gerando uma eterna factura que deverá ser paga pelo cidadão contra a sua própria existência.

O tempo esmaga-nos. Entramos em conflito com o tempo. E perdemos espaço para existirmos. Utiliza-se o tempo para acelerar objectivos de produtividade, esmagando o corpo do trabalhador com o peso impossível do tempo para o «investidor» passar a ter o tempo que roubou ao seu funcionário. Tudo entra em confronto num gigantesco boião de agressividade. Luta-se contra o tempo numa viagem contra o presente em busca de um futuro que nos agride e nos deixa a enorme frustração de não termos aproveitado o passado enquanto ele foi presente. Há um desejo de futuro como se fosse a panaceia para os males do presente quando mais não é, como se tem verificado, o caldeirão de uma sociedade canibal que nos vai cozendo em lume forte. Corre-se para o futuro sem se saber que se foge do presente.

Olha-se para o gesto dos produtores de «gadgets» que acenam com produtos de aparente acesso fácil como se acena aos burros com cenouras. E a turba corre sem parar, sem olhar para trás, movida por emoções descontroladas para chegar ao futuro e constatar que ele se tornou na mais cáustica derrota do presente. E continua a correr contra o tempo para que o tempo lhes retire o ritmo natural de uma vida presente. Violenta-se o presente projectando futuros plenos de banalidades. O futuro fabricado pelas grandes multinacionais do consumo retira-nos a consciência de viver plenamente o presente com as conquistas sólidas que trazemos do passado. E ao perdermos essa consciência perdemos o passado, o presente e o futuro para gáudio daqueles que programam holocaustos sociais no tempo.

O futuro trouxe consigo o retorno do confronto agravado entre as grandes potências, as guerras em territórios de grandes recursos e de populações paupérrimas que estão a ser destruídos pela gula das minorias criminosas que, por sua vez, sustentam terrorismos que alteram o sentido da nossa segurança e que alimenta os poderes que nos consomem a esperança com um exaustivo cardápio de medos.

Tudo se desorganiza.

Perdem-se empregos, casas, afectos.

Ao querermos subverter o tempo, somos esmagados por ele numa luta paradoxal.

O tempo que nos toca é para ser vivido e não escoado.

Tudo é urgente quando se esquece o que é importante.

Luís Filipe Sarmento, Gabinete de Curiosidades, 2017

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Foto: José Lorvão

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